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Rachaduras no paraíso
-revista Piauí_33 / junho 2009-
(resumo do artigo de Johann Hari pela escritora e poeta, Lucelena Maia)
O xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o soberano de Dubai, vendeu-a ao mundo como a cidade das Mil e Uma Luzes, uma Sangri-lá do Oriente Médio protegida das tempestades de areia que assolam a região.
É abril de 2009 e alguma coisa está mudando no sorriso do xeque Mohammed. Nessa terra do Nunca edificada num extremo do mundo, as rachaduras começam a aparecer. Dubai é uma metafora viva do mundo globalizado neoliberal que pode estar desmoronando.
Entre os guindastes espalhados por toda parte, muitos estão paralisados, como que perdidos no tempo, e há inúmeros canteiros de obras inacabados, num abandono completo.
A canadense Karen Andrews chegou a Dubai quatro anos atrás. O marido tinha conseguido um bom emprego numa multinacional. Assim que o casal aterrissou no emirado, em 2005, as apreensões desapareceram. "Parecia uma Disneylândia para adultos, com o xeque Mohammed no papel de Mickey", relembra. "A vida era fantástica". Não tardou muito e Daniel, o marido de Karen, comprou dois imóveis.
Mas, pela primeira vez na vida, ele se embaralhou nas finanças. Karen começou a estranhar as confusões financeiras do marido. Passado um ano, descobriu que Daniel tinha um tumor maligno no cérebro. "Até então, eu não sabia nada a respeito das leis de Dubai, imaginei que o sistema local deveria ser parecido com o do Canadá, ou de quaquer outra democracia liberal". Ninguém lhe havia contado que em Dubai não existe o conceito falência. Quem se endividar e não tiver como pagar vai para a cadeia.
Em Dubai, quando um funcionário larga o emprego, o empregador tem o dever de comunicar o fato ao seu banco. Caso tenha dívida em aberto, todas suas contas são bloqueadas e ele fica proibido de sair do país. "De repente, nossos cartões de crédito pararam de funcionar. Fomos despejados do nosso apartamento e não tínhamos mais nada". Daniel foi preso no dia do despejo, condenado a seis meses de prisão diante de uma corte que só falava árabe, sem tradução. "Agora estou aqui, sem nada, aguardando que ele saia da prisão", explica a mulher. Karen dorme dentro de um Range Rover há meses, no estacionamento de um dos hóteis mais chiques de Dubai, graças à caridade dos funcionários bengaleses, que não tiveram coragem de expulsá-la.
O caso de Karen não é único. Por toda a cidade existem imigrados dormindo clandestinamente nas dunas de areia, no aeroporto ou no próprio carro. "É preciso entender que em Dubai nada é o que aparenta ser", resume a canadense. "Você é atraído pela idéia de um lugar moderno, mas por trás dessa fachada o que temos é uma ditadura medieval."
Trinta anos atrás, quase toda a área onde se ergue hoje o emirado de Dubai era deserta. Foi quando os ingleses bateram em retirada, a dominavam desde o século XVIII até 1971, Dubai se juntou a seis pequenos estados vizinhos e formaram a federação, os Emirados Árabes Unidos. A retirada britânica coincidiu com a descoberta de generosos lençóis de petróleo na região.
Al Maktoum decidiu fazer o deserto enriquecer. Planejou construir uma cidade que se tornasse o centro do turismo e de serviços financeiros, atraindo dinheiro e profissionais do mundo inteiro. Convidou o mundo a seu paraíso fiscal - e o mundo veio, esmagando os habitantes locais, que agora representam só 5% da população total de Dubai.
Em apenas tres décadas uma cidade inteira surgiu do nada. Um salto do século XVIII para o século XXI em apenas uma geração.
Toda as noites os milhares de peões estrangeiros que constroem Dubai são levados dos canteiros de obras para uma imensidão de concreto, em pleno deserto, distante uma hora da cidade. Ali permanecem isolados. São levados em ônibus fechados, que funcionam como estufas no calor do deserto. São cerca de 300 mil homens que moram amontoados.
Nesse local que fede a esgoto e suor e que foi o primeiro acampamento que visitei, logo fui cercado por moradores, ávidos para desabafar com quem se dispusesse a ouvi-los.
Depois de muito ouvir, indago se o grupo se arrepende de ter vindo. Todos olham para baixo. Depois de um tempo, alguém rompe o silêncio: "Sinto saudade de meu país, da minha família, da minha terra. Aqui, não dá para plantar nada. Só tem petróleo e obras."
Um cidadão inglês que trabalhou no setor de construção me disse: "Ocorrem inúmeros suicídios nos acampamentos e nas obras, mas ninguém quer tocar no assunto. Dizem que foi acidente."
Um estudo da ONG Human Rights Watch revelou que existe um ocultamento da real extensão das mortes causadas pela exposição ao calor, excesso de trabalho e os suicídios.
Na distância, a cintilante silhueta de Dubai se ergue indiferente.
O dia tem sempre a mesma luminosidade artificial, o mesmo piso brilhante, as mesmas grifes de luxo globais. Neles, Dubai se reduz à sua essência: compras e mais compras.
Como se sente o cidadão local diante da ocupação de seu país por estrangeiros? Quando abordados, as mulheres se calam e os homens se ofendem, respondendo secamente que está tudo bem. Concluo que não é prudente sair perguntando essas coisas para dubaienses.
Dubai não é apenas uma cidade vivendo além de seus recursos financeiros. O emirado vive além de seus recursos ecológicos. Dubai bebe o mar. A água dos emirados, dessalinizada em fábricas espalhadas por todo o Golfo, é a mais cara do planeta. Segundo Dr. Raouf, caso a recessão se transforme em depressão, Dubai pode ficar desabastecida. O aquecimento global piora ainda mais a situação. "Estamos construindo todas essas ilhas artificais, mas se o nível do mar subir afunda tudo..."
Na minha última noite no emirado, já a caminho do aeroporto, parei numa pizzaria perdida em meio às autoestradas. Pergunto à moça filipina do balcão se ela gosta do lugar. "Gosto", diz ela, inicialmente. "Pois eu detesto", rebato. Ela concorda e desabafa: "Demorei alguns meses para perceber que tudo aqui é falso. Tudo. As palmeiras são falsas, os contratos de trabalho são falsos, as ilhas são falsas, os sorrisos são falsos. Dubai é como uma miragem. Você acha que avistou água, mas quando chega perto vê que é só areia."
( segundo a reportagem, alguns nomes nesse artigo foram modificados)
* O artigo é bem mais extenso, mas cuidei da reportagem de Johann Hari, resumindo-a, sem furtar ao leitor entender o que é, de fato, esse paraíso, chamado Dubai. ( Lucelena Maia)
-revista Piauí_33 / junho 2009-
(resumo do artigo de Johann Hari pela escritora e poeta, Lucelena Maia)
O xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o soberano de Dubai, vendeu-a ao mundo como a cidade das Mil e Uma Luzes, uma Sangri-lá do Oriente Médio protegida das tempestades de areia que assolam a região.
É abril de 2009 e alguma coisa está mudando no sorriso do xeque Mohammed. Nessa terra do Nunca edificada num extremo do mundo, as rachaduras começam a aparecer. Dubai é uma metafora viva do mundo globalizado neoliberal que pode estar desmoronando.
Entre os guindastes espalhados por toda parte, muitos estão paralisados, como que perdidos no tempo, e há inúmeros canteiros de obras inacabados, num abandono completo.
A canadense Karen Andrews chegou a Dubai quatro anos atrás. O marido tinha conseguido um bom emprego numa multinacional. Assim que o casal aterrissou no emirado, em 2005, as apreensões desapareceram. "Parecia uma Disneylândia para adultos, com o xeque Mohammed no papel de Mickey", relembra. "A vida era fantástica". Não tardou muito e Daniel, o marido de Karen, comprou dois imóveis.
Mas, pela primeira vez na vida, ele se embaralhou nas finanças. Karen começou a estranhar as confusões financeiras do marido. Passado um ano, descobriu que Daniel tinha um tumor maligno no cérebro. "Até então, eu não sabia nada a respeito das leis de Dubai, imaginei que o sistema local deveria ser parecido com o do Canadá, ou de quaquer outra democracia liberal". Ninguém lhe havia contado que em Dubai não existe o conceito falência. Quem se endividar e não tiver como pagar vai para a cadeia.
Em Dubai, quando um funcionário larga o emprego, o empregador tem o dever de comunicar o fato ao seu banco. Caso tenha dívida em aberto, todas suas contas são bloqueadas e ele fica proibido de sair do país. "De repente, nossos cartões de crédito pararam de funcionar. Fomos despejados do nosso apartamento e não tínhamos mais nada". Daniel foi preso no dia do despejo, condenado a seis meses de prisão diante de uma corte que só falava árabe, sem tradução. "Agora estou aqui, sem nada, aguardando que ele saia da prisão", explica a mulher. Karen dorme dentro de um Range Rover há meses, no estacionamento de um dos hóteis mais chiques de Dubai, graças à caridade dos funcionários bengaleses, que não tiveram coragem de expulsá-la.
O caso de Karen não é único. Por toda a cidade existem imigrados dormindo clandestinamente nas dunas de areia, no aeroporto ou no próprio carro. "É preciso entender que em Dubai nada é o que aparenta ser", resume a canadense. "Você é atraído pela idéia de um lugar moderno, mas por trás dessa fachada o que temos é uma ditadura medieval."
Trinta anos atrás, quase toda a área onde se ergue hoje o emirado de Dubai era deserta. Foi quando os ingleses bateram em retirada, a dominavam desde o século XVIII até 1971, Dubai se juntou a seis pequenos estados vizinhos e formaram a federação, os Emirados Árabes Unidos. A retirada britânica coincidiu com a descoberta de generosos lençóis de petróleo na região.
Al Maktoum decidiu fazer o deserto enriquecer. Planejou construir uma cidade que se tornasse o centro do turismo e de serviços financeiros, atraindo dinheiro e profissionais do mundo inteiro. Convidou o mundo a seu paraíso fiscal - e o mundo veio, esmagando os habitantes locais, que agora representam só 5% da população total de Dubai.
Em apenas tres décadas uma cidade inteira surgiu do nada. Um salto do século XVIII para o século XXI em apenas uma geração.
Toda as noites os milhares de peões estrangeiros que constroem Dubai são levados dos canteiros de obras para uma imensidão de concreto, em pleno deserto, distante uma hora da cidade. Ali permanecem isolados. São levados em ônibus fechados, que funcionam como estufas no calor do deserto. São cerca de 300 mil homens que moram amontoados.
Nesse local que fede a esgoto e suor e que foi o primeiro acampamento que visitei, logo fui cercado por moradores, ávidos para desabafar com quem se dispusesse a ouvi-los.
Depois de muito ouvir, indago se o grupo se arrepende de ter vindo. Todos olham para baixo. Depois de um tempo, alguém rompe o silêncio: "Sinto saudade de meu país, da minha família, da minha terra. Aqui, não dá para plantar nada. Só tem petróleo e obras."
Um cidadão inglês que trabalhou no setor de construção me disse: "Ocorrem inúmeros suicídios nos acampamentos e nas obras, mas ninguém quer tocar no assunto. Dizem que foi acidente."
Um estudo da ONG Human Rights Watch revelou que existe um ocultamento da real extensão das mortes causadas pela exposição ao calor, excesso de trabalho e os suicídios.
Na distância, a cintilante silhueta de Dubai se ergue indiferente.
O dia tem sempre a mesma luminosidade artificial, o mesmo piso brilhante, as mesmas grifes de luxo globais. Neles, Dubai se reduz à sua essência: compras e mais compras.
Como se sente o cidadão local diante da ocupação de seu país por estrangeiros? Quando abordados, as mulheres se calam e os homens se ofendem, respondendo secamente que está tudo bem. Concluo que não é prudente sair perguntando essas coisas para dubaienses.
Dubai não é apenas uma cidade vivendo além de seus recursos financeiros. O emirado vive além de seus recursos ecológicos. Dubai bebe o mar. A água dos emirados, dessalinizada em fábricas espalhadas por todo o Golfo, é a mais cara do planeta. Segundo Dr. Raouf, caso a recessão se transforme em depressão, Dubai pode ficar desabastecida. O aquecimento global piora ainda mais a situação. "Estamos construindo todas essas ilhas artificais, mas se o nível do mar subir afunda tudo..."
Na minha última noite no emirado, já a caminho do aeroporto, parei numa pizzaria perdida em meio às autoestradas. Pergunto à moça filipina do balcão se ela gosta do lugar. "Gosto", diz ela, inicialmente. "Pois eu detesto", rebato. Ela concorda e desabafa: "Demorei alguns meses para perceber que tudo aqui é falso. Tudo. As palmeiras são falsas, os contratos de trabalho são falsos, as ilhas são falsas, os sorrisos são falsos. Dubai é como uma miragem. Você acha que avistou água, mas quando chega perto vê que é só areia."
( segundo a reportagem, alguns nomes nesse artigo foram modificados)
* O artigo é bem mais extenso, mas cuidei da reportagem de Johann Hari, resumindo-a, sem furtar ao leitor entender o que é, de fato, esse paraíso, chamado Dubai. ( Lucelena Maia)